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Cronicas-->Xícara -- 19/11/2023 - 17:19 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Acordar às vezes tem seu preço: sumir de um sonho agradável, cair no abismo da matéria finita, repensar na dureza de ser sozinho, raramente desfrutar. O barulho da água nas calhas é único, desses que você ouve e volta a dormir, num torpor que destonifica os músculos da vida plena. A alma se encolhe nos dias de chuva e somos forçados a repensar em nossa finitude quando vemos um carrilhão de formigas tentando não se afogar. O tamborilar das gotas hipnótico destrava as telhas do Infinito que recobrem nossa inteligência com a sensação de que, se ainda não há, deve haver um esquecimento de algo que precisamos fazer, mas não fizemos. A chuva aperta lá fora e algum sonho escapa de seu continente e assume por vezes a realidade que nos cerca--e o faz sempre que estamos sozinhos, sem modo algum de registrar aquilo que parece improvável, mas que está ali, bem na nossa cara, só com a gente.

Quando acordei, estava decidido a fazer um café forte para despertar realmente, como sempre faço nestes dias modorrentos de final de primavera e começo de verão. Há no ar perfume de jasmim dos poetas, culpa do vizinho do lado que adora tal planta porque Baudelaire sempre o inseria em suas escritas. Como eu não sei de nada mais que o mal das flores, acho que não há nada demais e consigo até permitir a mim mesmo aspirar o ar que não me faz tão bem como eu gostaria que fizesse pelo menos não me faz espirrar como fazia o perfume de gardênia, este sim indecoroso e mais ainda a dama-da-noite, que me causava enxaquecas. Tudo isto agora é passado, porque o corpo se acostuma com o que padece e não é exatamente um sofrimento acordar de noite com a sala perfumada por flores pregadas ao muro de divisa, nada mal, nem flores nem mal delas, apenas a convivência civilizada.

Tomei o rumo da cozinha não sem antes tropeçar no pedacinho de tapete colocado pelo demônio no lugar mais improvável do chão de madeira; ainda hei de retirá-lo antes da fratura fatal. O relógio marcava sete e meia da manhã—velho hábito de marcar o final da noite com o marco temporal afixado na retina. Cada dia é um marco e o tempo nos serve de guia e é ilusório porque cada minuto já foi e o antigo perpassa o novo sem nossa permissão, de modo que somos obrigados a encarar sua assertividade com a passividade dos bichos tortos que somos, daí os relógios e seus marcos e ponteiros.

Na preparação do café, a seleção do sabor “lungo”, o acender da pequena luz verde que pisca enquanto a água se aquece por ação da eletricidade, o ruído que diz que terminou a espera, o café que se desenha. Algo a mais? Só que a xícara não sai da mesa, terei deixado cola cair justo onde pus a xicara? Primeiro, tento de modo cauteloso, vai que se desprende a louça e eu veria o precioso líquido voar nos ares rumo ao teto e paredes; calma! Ansiosos por tomarem café? Segundo estudiosos, é a bebida que estimula a pensar mais, a se concentrar mais e a ficar acordado nas horas mais insólitas, por isso a recomendação, nunca tome café às três da manhã. Tento puxar de leve pela alça da xícara, velha peça de um jogo que foi de mamãe quando ela se casou, calhou de me dar todas as que tinha pensando em quando eu “iria receber” em casa. Hábitos de ex-ricos, tilintar o sininho no almoço, vá lá. No entanto, a maldita xícara não sai da mesa. Já posso imaginar o café quente e poderoso descendo para minha garganta, um hábito de milênios... mas a xícara não desgruda da mesa. A alça da xícara, num movimento mais brusco meu, se alonga como se fora de plástico amolecido pelo calor de minha mão esquerda (sou canhoto) e eu raciocino, penso e inspiro, deve ser algo de realidade aumentada. Uma expansão de consciência, talvez um nicho novo de um jogo que ainda insisto em jogar. Pode ser que eu esteja dormindo, ainda, porque isto nunca me aconteceu.

Bem, vejamos, devemos ser racionais sempre; isto nos diferencia dos Outros, aqueles que dependem de si mesmos e somente dos instintos para sobreviver no mundo. A racionalidade nos dá a possibilidade de ver o que fazemos e existir enquanto pensamos, os Outros nunca saberão nem do tempo que passa. Somos racionais porque pensamos e temos a noção de que o Tempo passa devagar ou depressa, dependendo de onde nos localizamos, mesmo de um lugar a outro, em movimentos distintos. Eu olho a alça da xícara alongada feito chiclete, eu não posso estar sonhando. Isto deve ser a verdade, não a outra que se dissipa num gole quente, a resistência da xícara talvez seja um modo perverso da outra realidade se impor aos meus instintos mais básicos e mostrar a mim que nunca deixarei de ser como os Outros. E toma a puxar a xícara, com cuidado, mas firmemente e ela agora vem à minha boca, o aroma penetrando em meu nariz e estimulando minhas memórias de outros tempos, de outras eras e de sonos ainda mais espessos. Tudo bem, pensa a xícara. Tudo bem que ele é dos Outros, consegue pensar e acha que tem “alma” quando na verdade em nossa mineralidade que é eterno somos nós, base sobre a qual se sustenta o mundo deles, horroroso e sujo. Tudo bem que o sonho seja o deles, nem dos Outros, mas ele é um deles, então devo ceder—pensa a xícara. Tudo bem que ele me erga à altura de seus olhos e me examine, peça fina de porcelana que serviu a gerações passadas de dias mais gloriosos. Tudo bem que seus dentes pareçam um piano, brancos e bem-cuidados. Então, o café escorre de mim para ele, ele se deixa amoldar como fluido espesso que é, e entra em sua boca. Sua boca, diria uma caverna, cheia de humores, saliva e carne. E dentes. Tudo bem. Deixe estar.

“Esse round ele vence, ele toma o café, agora é com ele, descendo a torre de carne, o funil que obscurece a luz do dia e o faz pensar que é o sonho que ainda persiste, então ele realmente acorda; o café faz, então, a sua parte.” Então o café desce, domado circunstâncias e da natureza mesma dos líquidos e habita o estômago daquele quibe que pensa, de pernas compridas feito uma girafa baixinha, os braços sempre ocupados em rodar rodar rodar e o cérebro que pensa que pensa que pensa em sonhar, mas na realidade, ofusca o que é real com palavrório e ilusão.

O café cumpriu a sua missão.

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